Rodeado de palavras em forma de livro ou musicadas, José Luís Peixoto fala como se recitasse um dos seus poemas. A voz é calma, o olhar é sereno e pestaneja alguma melancolia. No fumo dos cigarros que saboreia consecutivamente, caminha a simplicidade que o distingue entre muitos. Tem um riso silencioso que faz esquecer, por longos momentos, a tarde escura que espreita por entre as cortinas da sala onde escreve.
Tem 31 anos, vários piercings e algumas tatuagens, mas não se considera irreverente. Escreve muito e quando não o está a fazer, pensa nisso.
Sentado num sofá vermelho-sangue, trágico como dizem ser a sua escrita, passeia pela tentativa de saber quem é. Diz não ter todas as respostas do mundo, mas tem o conhecimento na ponta dos dedos e, quando fala, descobre o que se esconde atrás da vida.
Está a escrever um novo romance, Cemitério de Pianos. Com que linhas o escreve?
Não gosto de falar dos romances em que estou a trabalhar, sobretudo quando ainda não estão concluídos. Estou à beira de terminá-lo, mas não quero adiantar nada acerca das linhas do romance. Podem surgir alterações e qualquer coisa que dissesse agora iria criar uma expectativa que depois não seria confirmada.
Tem a ver com alguma espécie de superstição?
Também. Vou criando, constantemente, novas superstições. Há algumas passageiras, mas muito importantes, porque determinam a minha vida e a minha maneira de escrever.
Não o limitam?
Sim, mas não é uma angústia muito grande. Relativizo um bocado o lugar dessas superstições. Não vivo nem escrevo em função delas. No entanto, há dois números que evito: o 11 e o 13. Quando chego às páginas com esses números, custa-me um pouco mais avançar.
Tem algum método de escrita?
O meu método é escrever sempre. Quando não estou a escrever, estou a pensar nisso.
Que peso tem a inspiração?
Inspiração? Não sei muito bem o que isso é. Essa “voz” que às vezes diz coisas também deve ser ouvida. Se alguma coisa me surge mais por intuição do que por raciocínio, escrevo-a imediatamente e só depois é que páro para pensar e avaliar. Mas quem não está disposto a trabalhar muito, nunca poderá escrever um texto como um romance – escrever um romance é trabalhar, muitas vezes, contra a nossa vontade. É transpirar.
A poesia é mais espontânea?
Sim, não conseguiria marcar uma hora para me sentar e escrevê-la. Surge-me um primeiro verso que vou desenvolvendo progressivamente ou que associo a um conceito. Mas na poesia também é essencial reler muitas vezes e distanciar-se dela o suficiente para conseguir avaliá-la.
Escreve mais de dia ou de noite?
Escrevo mais de noite, porque é muito mais calma. Também escrevo de dia, desde que tenha tempo e disponibilidade mental.
Prefere o silêncio ao burburinho...
Completamente. O silêncio ou a minha própria banda-sonora.
Banda-sonora?
Sim, pode ser qualquer coisa, desde que seja o que a escrita me sugira ouvir. Cada livro meu tem uma série de músicas ou intérpretes relacionados, como se fosse um filme.
O que procurava quando escreveu pela primeira vez?
Não sei. Sei que queria experimentar dizer coisas que nunca tinha visto ditas.
Não era como um refúgio?
Um bocadinho, mas não apenas isso. Era um interesse pela experiência com palavras. Quando se tem 16 anos, nunca se consegue deixar de reflectir sobre certas questões, não é? Se não fosse algo que não tivesse um cariz marcadamente pessoal, não me interessaria muito.
O que procura, agora?
Continuo a não saber. Os Sex Pistols cantam: “Don’t know what I want, but I know how to get it.” É isso que sinto. As palavras que encontro para mostrar o que quero são tão vagas, que duvido que signifiquem alguma coisa.
“Para me manter a viver da escrita, tenho de escrever muitas coisas que não escreveria naturalmente”
Era professor de Inglês. Abandonou o ensino para se dedicar à escrita. Como foi esse processo?
Quando comecei a pensar o que gostava de fazer na vida, queria ensinar. E, de facto, ser professor não me decepcionou. Sempre me agradou muito a imprevisibilidade das aulas, não existir um horário preenchido de forma monótona. No entanto, embora a escrita seja uma actividade pouco estável, dar aulas também o é. Às vezes, penso se terei feito a melhor escolha, porque para me manter a viver da escrita, tenho de escrever muitas coisas que não escreveria naturalmente. Algumas surpreendem-me no final, mas outras roubam-me tempo e gastam-me.
Escrever é uma forma de ensinar?
Sim, mas é, de certeza, uma forma de aprender. A minha maior ambição é conseguir aprender e esperar que os outros também o queiram fazer.
Uma vez disse que os bons romances acrescentam sempre algo à vida do leitor. Acha que os seus romances o conseguiram?
Espero que sim, porque à minha própria vida acrescentaram muito. Só por essa razão é que tenho a ambição de publicá-los. Se não se acreditar naquilo que se escreve, é muito difícil ultrapassar todas as barreiras que se colocam no caminho de quem pretende publicar.
E que romances ou escritores completaram fases da sua vida?
O primeiro romance que li foi “Esteiros” de Soeiro Pereira Gomes. Marcou-me imenso, não só porque chorei muito a lê-lo, como por ter lido o livro até ao fim. Foi um grande feito. Com 16 anos, comecei a ler Florbela Espanca, que ainda hoje releio. Li primeiro os Sonetos e, à maneira dela, escrevi um caderno com 60 ou 70 sonetos meus. Depois, de uma forma quase auto-didacta, comecei a ler vários autores, como Ruy Belo, Herberto Hélder ou Nuno Júdice, tentando encontrar referências. Nessa altura, comecei a ler mais poesia e a escrever, também. Com 17/18 anos, descobri Fernando Pessoa – essencial para mim –, e António Lobo Antunes, algo de transcendente, que me levou a escrever prosa. Na faculdade, encontrei William Faulkner, autor que (re)leio sempre. Todos estes autores têm uma importância vincada na minha vida. Hoje em dia é difícil encontrar autores que causem o impacto que estes causaram, nessas fases.
Lê vários livros ao mesmo tempo?
Leio. Podem ser de várias áreas e várias línguas. Gosto de ler em línguas que não compreendo, porque preencho os espaços com o que imagino que seja.
A palavra é uma companhia?
Sim, mas é mais uma forma de esquizofrenia porque, a partir de certo ponto, torna-se uma entidade verdadeira. É uma estranha forma de vida viver da palavra. No fundo está a vender-se aos outros algo de íntimo e privado.
Acha que, entre os seus livros, há muitos pontos de contacto?
Sim, e muitos deles são intencionais. Tenho uma certa dificuldade em prever os próximos livros e em escrever hoje de acordo com o que irei escrever amanhã. Mas não consigo escrever hoje, ignorando aquilo que escrevi ontem. A minha forma de escrever tenta ser paralela a mim próprio.
Em que é que se aproximam, os livros?
No estilo de escrita. As repetições, por exemplo, são constantes, apesar de não programadas. Também há uma vocação para desfechos trágicos, ambientes de maravilhoso, de fantástico, de milagre. Mas são coisas que estou pronto a ultrapassar. Mesmo as coisas mais essenciais, ponho-as em causa, seja na escrita ou não.
“É curioso, estarem sempre a perguntarem-me coisas. Não tenho muitas respostas”
Dá importância ao feedback dos leitores?
É fundamental, mas não posso escrever para tentar agradar aos outros. Esse é o maior erro. Se essa tentação me surge, esforço-me bastante para afastá-la. No entanto, seria mentir a mim próprio se escrevesse sem a ideia dos “outros” não estar lá.
Já lhe fizeram alguma pergunta constrangedora?
Muitas. É um aspecto curioso, estarem sempre a perguntarem-me coisas. Não tenho muitas respostas. Quando as perguntas são constrangedoras, não respondo. Nas entrevistas para revistas ditas sociais, ao contrário do que se pensa, fazem-me as perguntas menos constrangedoras. Nesse tipo de publicações cria-se uma ficção. Existe nelas um guião pré-estabelecido, em que existem duas ou três alternativas e não um mundo todo de respostas.
Quando foi solicitado por essas revistas, hesitou?
Não. Tenho uma regra pessoal – quando surge um convite para alguma coisa que nunca imaginei fazer, e que dificilmente a vida me trará de novo, aceito. Segundo esse lema, já fiz as coisas mais inesperadas. Acho importante dar entrevistas, seja a quem for, na esperança que possam criar alguma curiosidade sobre aquilo que escrevo.
Roland Barthes fala da morte do autor no leitor, relacionando-a com a liberdade interpretativa. Essa liberdade, quando dirigida aos seus livros, incomoda-o?
Não, é aquilo que mais procuro. A minha tentativa não é procurar uma coisa que diga o mesmo a todas as pessoas. É quase uma alquimia – encontrar palavras que sejam substâncias e que, somadas a qualquer pessoa, lhe dêem as ferramentas necessárias para ela própria construir o que quer que seja.
Os seus livros foram traduzidos em dezenas de línguas diferentes. Não acha que o português tem outro encanto, nos seus textos?
Não sei. O português é a única língua que entendo sem esforço, em que não se impõem filtros. É uma relação natural. Muitas vezes não há uma distanciação suficiente relativamente a ela, porque está como que por debaixo da pele. Não me incomodam as traduções – é o texto a diluir-se no mundo.
Após ter ganho o Prémio José Saramago, as expectativas aumentaram. Sentiu maior pressão sobre a escrita?
Senti, mas faço muito para essas expectativas aumentarem, porque as minhas ambições também aumentaram. Por vezes, são difíceis de gerir, podendo até ser castradoras. Tenho de regressar ao que era essencial quando comecei a escrever, ao tempo livre de pressões, e avançar.
Quando tem bloqueios de escritor, que armas usa para avançar?
Escrevo. Quando as coisas se desorganizam, quando nos sentimos incapazes, temos de ir avançando a pouco e pouco e alegrarmo-nos com esses pequenos sucessos. São estes que trazem a confiança, a vontade de continuar.
Saramago definiu-o como sendo “o continuador dos escritores”. Que significado lhe atribui?
É exactamente o que pretendo – não ser uma ruptura com nada do que já foi feito antes. Nunca me sugeri como algo que não tivesse raízes em lado nenhum.
“O amor, quando é pleno, é como vida em oposição à sobrevivência”
Fernando Ribeiro, vocalista dos Moonspell considerou-o “aquele que vive e sobrevive ao estilo de morte sulista”. Sente medo da morte?
Cada vez menos. O que me incomoda na morte é deixar aqueles que são importantes para mim, não é desaparecer.
Acha que se vive ou vai-se sobrevivendo?
São duas possibilidades. Faço tudo para viver plenamente, não quero apenas sobreviver. Por vezes, não tenho capacidade para conseguir mais do que sobreviver.
O medo de viver… É esse o veneno para o qual escreveu o “Antídoto”?
Sim, os nossos próprios medos.
Qual é o antídoto?
A amizade que, por si só, faz parte de algo maior: o amor. Quando é pleno, é como vida em oposição à sobrevivência. É a coragem mais absoluta.
Acredita numa vida depois da morte?
Não. Acredito que continuamos vivos naquilo que deixamos feito.
Disse que, noutra vida, gostaria de ser uma árvore feliz. Por quê uma árvore, se é algo que está estático?
Muitas vezes, todo o movimento que temos é ilusório. De facto, gosto muito de viajar. Mas aquilo que se aprende andando pelo mundo não é muito diferente do que se aprende passando uma vida num só lugar. Uma árvore, além de estar estática, também é firme, segura. Tem mais possibilidades de felicidade. Tem os filhos por perto que, por sua vez, crescem perto dos pais.
Quando escolhi a fotografia da capa do “Morreste-me”, dei preferência à que retratava duas árvores. Pensei que pudessem ser como um filho e um pai, em que as duas copas e as raízes se tocassem.
Escrever o “Morreste-me” – que vê a morte paternal de tão perto – foi como repisar a dor ou teve uma função catártica?
Foi algo de muito importante. Quando se escreve alguma coisa, tem necessariamente de se organizar e gerir. E, assim, foi uma forma de organizar e gerir sentimentos ligados à morte do meu pai.
Após a morte do seu pai, passou a viver rodeado de figuras femininas. É algo sempre presente em si e na sua escrita?
Sim. Por acaso, uma das perguntas que me custa mais ouvir, é quando alguém me questiona por que trato tão mal as mulheres nos meus livros, envolvendo, por vezes, acusações de misoginia. O que acontece é exactamente o contrário – mostrar uma pequena dimensão do quão maltratadas são as mulheres, para que não se finja que não são. É fundamental escrever sobre mulheres.
O amor é mesmo “ter medo e querer morrer”, como escreveu em “Criança em Ruínas”?
Não, essa é apenas uma possibilidade. Não sei definir o amor, mas penso que quantas mais respostas dermos, em relação ao que é o amor, mais perto nos situamos desse conceito final.
“Sou muitos contrários num só”
Uma vez disse que a ingenuidade era a sua maior extravagância.
Acho que se pode optar entre ingenuidade versus cinismo. Muitas vezes fala-se da maldição do conhecimento. Para mim, ser inteligente é ser feliz. Muitas vezes, a felicidade pode encontrar-se na ingenuidade, encarando esta última como bondade.
Acha que é um ser pessimista?
Não. As minhas histórias têm fins, mas não são necessariamente sinal de pessimismo. O fim das pessoas é a morte e não o “foram felizes para sempre”. Isso é uma suspensão no tempo, de uma irrealidade. Mais impossível que qualquer coisa é ser feliz para sempre.
Diz que “uma lágrima é morrer tão completamente”. Chora muitas vezes?
Já chorei muitas vezes. É bom chorar. Se estiver muito triste, não choro, não como, não faço nada. Chorar é reagir.
Tem algumas tatuagens. É uma forma de eternizar momentos?
Sim, não tenho qualquer pudor em relação às tatuagens e à eternidade que lhes é intrínseca. Não me arrependo de as ter feito. São como cicatrizes.
Acha que a sua aparência é uma forma de irreverência?
Não. Piercings e tatuagens para mim são uma coisa bastante individual. São como uma extensão do corpo – torna-se um bocadinho maior e diferente ao toque, fica muito mais sensível. Às vezes, achava que se alguém me tratava mal, era devido à minha aparência. Hoje em dia, já não penso assim, acho simplesmente que a pessoa é idiota.
Considera-se um artista?
Sim, muito. Gosto de cruzar diversas artes e, também, de trabalhar com outras pessoas, partilhar responsabilidades. Na escrita não tenho muita oportunidade de fazer isso, é uma experiência mais solitária.
Quem é, então, José Luís Peixoto?
Não faço a mínima ideia. Sou muitos contrários num só. Não tenho grande pudor de procurar hoje uma situação e de amanhã procurar exactamente o oposto. Aquilo que faço, ao escrever, é sempre procurar definir-me e saber mais de mim próprio. Sempre. Mas quando chego a alguma conclusão, esqueço-me ou mudo. Existem tantas perspectivas para me olhar! Existe um interior tão cheio de túneis e escuridão por eliminar que, por vezes, perco-me. Sou de certeza uma pessoa que não sabe quem é.
Entre-Vista: Marta Poiares
Foto: D.R.
<< Home